quarta-feira, 4 de setembro de 2024

ABC...dário

 

A ausência antes angustiante agora apenas aparenta aqueles amores absurdos, ababelados, apagados a assentos a assomar.

Basta brevemente borrada, barafundeada, bem baralhada, biscate, bufã.

Cioso com cada cena cerrada cerebralmente, calo cada caso cometido com carinho.

Dou dulia deveras devoto da deusa distante da drástica dor de dentro do divino daqui.

Enquanto esqueço e erro, eu exclamo, exalto e exulto. E existindo em emoções encapadas, enroladas, escondidas — escancaradas? — espero espantado evolar-me em epicédio.

Fica fácil fazer-se fúnebre (fiz-me furente!) frequentando festivais frívolos, funestos, fementidos (fofocas, futilidades, falsos feitos).

Gestos grandiloquentes geralmente ganham graça grassando gentil galanice gerada gemendo (gritando) gozo grave.

Havia hábitos hebdômados hilariantes: humanos horrendos hesitavam hobby hedonista.

Infelizes! Inquietava-me insistir irritantemente imerso, infundido, imotado, infeliz, indiferente, “icônico imoral”.

Jactava-me jamais jazer jovem. Janota, jurei jogar jogos, jejuar jus jeovista, julgar jornada jugal; janistroques, juntei jirotes jantando — jiquipanga justa! —, jongo, jaré juntando jererê jito.

Ladairei léguas lacerado, luctífero, lambuçado. Lá, labreado, listei lutos, livrei lisonjas, liguei lições, ludibriei lógicas, locupletei láureas, lençalhei luxos. Labrego, loucamente lamechado, laconizei-me lacrando lábios.

Morri momentaneamente? Matei-me miseravelmente mercê merencória mesmice mimetizada milênios? Monomania me mabaça minando meus melhores méritos. Meu magistério modorra mudado, moderno, momo. Madraço, misturo minhas mágoas mais merecidas; mas mortiço, maladio…

Não! Nem noutra narrativa naufragaria nesta necedade niilista naturalizada na nequícia normalizada naquelas neurastenias nonsenses. Nonada!

Outros optariam obdurar ocasiões olhalegres. Obfirmado, ombreei oposição onduleante onde os opacos, outrora oportunistas, ocorriam o ocaso oficial.

Pabulagem pregada por picareta para pascácio pascer purgado pusilânime pelos passeios pede porrada porfiante. Protopacientemente, pois, protejo pacholas prostadas perante perigosos porcinos (pabulantes) podridos, presepeiros, picaretas próximos. (Pocema!).

Que querente quererá quadrilhar quaisquer quarteirões quando “Quem-Diga” que quarteiriza quamanhos quinhões? Queromaníacos? Quetilquês? Quanta quizila! Quanta quengada! Queria quididade querubínica quebrantando queridos qual querigma queimando quem quer. Quimera...

Rábido, reparo rapazes rotos ribombarem risos ruminantes; rabeiam. Reajam, rapazes renitentes! Reacenda-se, rebeldia renovada! Reerga-se razão rufada, realegrando regentes, regidos, remansão. Ruas regozijarão recomeço retumbante.

Sonho sonhos sensacionais. Saboreio sensações suaves sendo simples sabagante. Se soçobro sob suplícios sufocantes, socorrem-me sorrisos sensuais, sinceros, sublimes. Sádico, sou sacrílego sano: sacrifico santidade semeando safadice; sabedoria sucumbe sob sedução; sedição segue seu sobrepor.

Trabalho tunando toda Terra (troço). Tento tudo. Travesso, tensiono turbas tocando tambores, tintinabulando timpanetes, tergiversando tagarelices trágicas. Trilho terríveis trevas transgredindo tradições tolas. Tinhoso, travo tinhanha toquista tramando trapacear.

Ulcerado, urrei ultrajes unilaterais. Usei usurpar urbanidade unissonante (ucronia única ungida unanimemente). Uniu-se-me ultriz ululante. Ululei ultimado. 

Vi vir vergonha vil varrer-me vitórias, viço, venturanças. Voltei voluntariamente. Valente, vacinado, vagando vias vedadas, voltejando vicissitudes vorazes… vinguei vitupérios, volvi vilanias, vaticinei virtude varonil. Venci vaniloquência vazia vergastando vosso volutabro vulgar. Volúpia virginal

Xacoco… xoxo xumberguei. Xumbregar? Xongas! Xingaram-me xexeiro. Xinxilha xendengue, xeroquei xurumbambos…

Zombarão! Zoilos zaranzando... zanagas ziguezagueantes zunindo zarelhas zanguizarradas... Zuretas... Zangados… Zampões…  Zum-zum-zum… 


 

 

 

 

Glossário

 

ababelado: confuso

barafunda: confusão de coisas

dulia: culto rendido aos anjos

epicédio: discurso fúnebre

fementido: conduta traiçoeira; falso

furente: colérico; furioso

hebdômada: período de sete (dias, semanas, anos)

imotado: impedido de se mover

janistroques: indivíduo sem valor; “joão-ninguém”

janota: almofadinha

jaré: dança africana

jererê: maconha

jiquipanga: festa ruidosa

jirote: vadio

jito: muito pequeno, miúdo

labreado: muito sujo

labrego: homem rude

ladairo: procissão para paga de promessas

lamecha: comportamento ridículo do enamorado

lençalho: lenço grande. de má qualidade

luctífero: que causa luto

madraço: vadio

maladia: doença

monomania: obsessão sobre ideia fixa

necedade: sandice ou ignorância

nequícia: crueldade

nonada: bagatela; insignificância

obfirmado: muito firme; obstinado

pabulagem: mentira ardilosa

pachola: pessoa ingênua e bondosa

pacientar: mostrar-se paciente

pascácio: homem simplório

pocema: grito típico de guerra a várias vozes

porcino: relativo a porco

quamanho: quão grande

quarteiriza: ato de delegar a terceirização a uma quarta pessoa

quem-diga: diabo

quengada: malandragem; esperteza; atitude ou dito impensado

querigma: núcleo da mensagem cristã com fim evangelizador

queromaníaco: pessoa com euforia exagerada; mórbida

quetilquê: pessoa sem importância

quididade: qualidade essencial

quizila: aversão

rábido: raivoso

sabagante: ser humano

tinhanha: barganha

tintinabulando: fazendo soar

toquista: policial que se deixa subornar

tunar: andar à toa

ululante: vidente

ulular: gemer em lamento

ultriz: mulher vingativa

vaniloquência: manifestação oral presunçosa

volutabro: desonesto

xacoco: sem graça

xendengue: magro, imprestável

xexeiro: caloteiro de prostituta

xinxilha: homem sem destaque

xongas: coisa nenhuma

xumbergar: ficar bêbado

xumbregar: namorar escandalosamente (reg)

xurumbambos: velharias

zampar: comer exageradamente

zanaga: vesga

zanguizarra: desafino

zaranzar: zanzar

zarelhar: fazer fofoca

zoilo: crítico, incompetente, invejoso 

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Fins e recomeços (FELIZ 2022!)

 

Eu tendo a acreditar que o amor será sempre a metáfora perfeita para a vida. A forma de amar é a forma de viver; como se reage ao amor é como se reage à vida. Quem teme amar, fatalmente é um grande medroso na hora de viver... e daí, no último dia do ano (ou a um dia do primeiro dia de um novo ano) eu me peguei pensando sobre como tanta gente sonha com começos, mas tanta gente não lida bem com os fins.

E talvez seja por isso que geralmente sejamos nós que queiramos pôr os pontos finais nas nossas diferentes histórias.

Ainda que às vezes relutemos, demoremos (e isso naqueles casos de quando a gente já sabe que não vale mais insistir, que precisa mudar, que não quer mais prosseguir aquela história, mas ainda assim, por alguma razão, a gente adia) até que o outro vai e termina.

E daí, nossa! O mundo cai, a tristeza é companhia certa, o desespero toma conta. Nem a gente entende, mas a gente não lida bem se alguém vem e age como se tivesse decidido antes da gente aquilo que a gente é que tinha que determinar.

A gente até se indigna: onde já se viu ter essa ousadia de encerrar algo que eu estou adiando encerrar? Se eu não tomei a iniciativa por que alguém tomaria?

E o pior é que a gente ainda se dá ao luxo de sofrer porque alguém decidiu fazer algo que, no fundo, a gente sabia que era o que deveria ser feito.

Tudo porque somos orgulhosos, egoístas... porque a gente gosta de acreditar que só a gente sente falta, mas jamais deixa faltar; só a gente sonha com mais, mas satisfaz a tudo de todos os demais. Porque somos perfeitos para todos esses que têm o defeito de não serem – nenhum – perfeito para nós.

Mas a verdade é que quando acaba para um, acaba para todo mundo. Porque não existe o que satisfaz sem estar satisfeito (comodismo é só um sintoma). Assim como não existe isso de pegar o outro de surpresa. O que há é no máximo negação, é não querer aceitar, é fazer vistas grossas para não ter que lidar com um mundo desmoronando. Todos os envolvidos sabem, percebem, sentem o que está acontecendo.

É só o fim chegando. E tudo bem.

Sim. Tudo bem! Porque todo fim é o início de todo recomeço. Fins não são apenas momentos terríveis a serem lamentados e sofridos, mas são também oportunidades incríveis de novos acontecimentos mais incríveis ainda. Porque toda a vida que vive, vive para frente e só para frente. Porque toda a vida que é, também é vida que será. E daí encerramos para começar e começamos para encerrar. Não pretendamos o que seja eterno (porque não precisamos do que seja eterno).

Daí que um ano acaba e logo outro começa e a gente sonha novos sonhos que encerrarão sonhos velhos e teremos novos encontros que superarão adeuses velhos e sorriremos novos sorrisos que apagarão choros tristes. E a vida seguirá, e nós seguiremos; e a vida acontecerá, e nós aconteceremos; e tudo será... e só dependerá de nós aquilo que nós seremos...

FELIZ 2022!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A tua imagem e a minha fraqueza


O poder da tua imagem em mim...
Só eu sei desde quando.
Você não lembra porque não notava.
Eu te via desde antes de você me ver. Eu te pensava desde antes de você me ver. Eu te queria desde antes de você me ver.
E quanto eu quis que ao me ver você também me notasse, me pensasse, me quisesse.
Durante todo o tempo eu soube ver em nós dois o que mais ninguém viu.
De tanto sonhar acordado o futuro que quis próximo, eu já sabia como queria te tocar, o que queria te fazer sentir, o quanto de mim queria à disposição de tudo de você. E por causa dessa certeza de que você é tanto, que só o meu todo poderia chegar perto desse teu quanto.
E tudo isso antes de saber tua voz, antes de saber teu cheiro, antes de saber teu gosto, antes de saber teu beijo ou o tanto que teus olhos são capazes de queimar. 
É o poder da tua imagem em mim. É o poder dessa ideia de um encontro forte, intenso o bastante para a tuas pernas tremerem mais que tua pele arrelia. E que disputa bem vinda saber de todo o teu corpo, qual te confessa mais.
Quantas vezes minhas mãos tremeram à ideia de tocar tuas pernas e meus olhos molharam à ideia de te ver (te fazer) verter o prazer mais íntimo a tomar conta do que tenho de mais íntimo, como um convite de quem oferece morada, oferece abrigo.
Sim. Tua imagem é a minha fraqueza. 
Porque te sei o tanto que te vejo. E te vejo forte, decidida e confiante o bastante para se dar por inteira a quem sabe te receber e também sabe te tomar e te levar e ir com você até o mais alto pico do prazer conjunto que você quiser gozar.
Ah... a tua imagem! Que não me falte. Que se renove. Que seja carne o que não se quer só ilusão.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

O que te impede?


O que te faz renunciar a vida? Que crença te faz abrir mão dos teus desejos, dos teus prazeres, do teu egoísmo? O que te faz escolher simplesmente dizer “não” para o que muitos talvez dissessem sim? Medo? Amor? Moral? Esperança? 
Se eu fosse invejar as religiões seria pela perspicácia dos líderes que se aproveitaram do medo as pessoas têm da morte para convencê-las de que após a morte há mais vida, mas para que essa outra vida seja boa, você precisa ser bom e obediente desde essa. 
Me diz se não são uns sacanas espertos. 
E não estou entrando no mérito da existência do Deus. Até porque acredito que haja um Deus que não é nenhum desses vários deuses (desses que cada crente tem o seu e o adapta ao que lhes é útil). O que eu questiono é quem deixa de viver sua vida por causa do que lhe disseram que é Deus. 
Gosto do verso dos Mutantes que canta que é melhor “não ser um normal se eu posso pensar que Deus sou eu”. Vocês devem conhecer essa música, ela chama “Balada do louco” e, por essa óptica, o que mais tem são loucos por aí. Gente que acha que o seu modo de viver é o que, como diz meu avô, já os deixam de malas prontas para ir para algum céu e que o modo de viver do outro o destina para algum inferno (como se, muitas vezes, o inferno não fosse viver com gente que se acha moralmente superior aos demais ao invés de apenas entender que são só diferentes). 
Mas eu também gosto de pensar como Deus e toda vez que faço isso, apesar de consciente de que sou falho e falível, penso que se eu fosse Deus não gostaria que alguém abrisse mão de suas vontades por medo de uma condenação eterna. Amor não combina com medo do amado. 
Mas talvez você me pergunte: mas abriria mão dos teus desejos e vontades por amor? E daí chegamos em um dos pontos em que mais pensei ao longo da minha vida: o amor quando é amado não pressupõe renúncia porque não há ao que renunciar. Mas quando é amado mesmo. Quando é sentido pelos cinco sentidos. Amor que vê e é visto e que tem gosto, cheiro, confissões de paixão, desejo e saudade ao pé do ouvido... amor que tem pele com pele.  
Quando é assim outros mundos são desinteressantes porque já temos nosso lugar no mundo. Portanto, não renunciamos ao mundo, mas nos lançamos a ele com toda nossa força e coragem e ousadia... paixão. 
Mas a pergunta que talvez seja mais importante é: você sabe o que deseja? E realmente tem certeza de que quer isso que acha que deseja? Você sabe por que pensa que gosta do que gosta ou o que falta para que fantasie o que fantasia? Você sabe de onde vem tua expectativa por uma vida de um ou de outro jeito e por que ainda não encontrou teu desejo mesmo com tanta história na tua vida? 
O que te impediu de dizer o sim que faria toda diferença? O que te impediu te coragem de se despedir, de terminar, de ir embora ou até de fugir? O que te impede recomeçar? Em nome de que vida mais ou menos você escolha não se dar a chance de se superar? 
Reflita e tente viver diferente. 

sábado, 11 de julho de 2020

Tempos para uma nova ordem: as fronteiras da humanidade devem cair


E de repente descobrimos que somos coadjuvantes da vida do resto do mundo.
De repente finalmente descobrimos que aquilo que fazemos conosco repercute na vida de muita gente que não é a gente.
De repente as pessoas se deram conta de que vivem numa comunidade que vai além de quaisquer paredes ou fronteiras. Que é bobagem achar ruim com haitiano, boliviano, chinês ou coreano. Que você pode se pensar vivendo num país de primeiro mundo ou no apartamento de luxo no ponto mais alto. O que os outros fazem e vivem te atinge. O que você faz e vive, atinge aos outros. E por uma razão muito, muito, muito simples e que deveria ser óbvia: somos todos da mesma espécie.
Essa divisão por cores, credos, nacionalidades, tudo isso é apenas um monte de bobagem quando a gente entende que somos todos tripulantes dessa nave azul de natureza tão castigada e bonita que alguém escolheu chamar de Terra.
Esse vírus nos ensina que o desamor, que a vingança, que a soberba e a ganância não agregam e nem contribuem. Pior do que isso: apenas revelam que os que assim se conduzem, se comportam e se conformam têm o pior em si.
Por outro lado, continuamos tendo a possibilidade de fazer a diferença e de entender que muitas vezes a personagem coadjuvante cativa mais do que aqueles que se julgam principais. Porque o coadjuvante, na medida em que contém o todo, faz com que todos se identifiquem de alguma com suas angústias, suas dores ao mesmo tempo que, empáticos, torcem pela sua superação.
Vivemos tempos de poucos abraços – alguns, de nenhum; vivemos tempos de isolamento que têm ensinado que a tecnologia é compensatória, mas jamais deve ser o principal. Porque não há chat em vídeo que substitua o perfume, o toque, o som, a presença que faz com que nós nos sintamos tão amados e queridos e desejados como desejamos, queremos e amamos.
Oxalá que ao final dessa temporada, as fronteiras não se ergam, mas se abaixem. A humanidade não se odeie, mas se repense, ressignifique, se ame.
Oxalá haja, de fato, uma nova ordem no mundo que agregue o mundo em torno de um único e suficiente ideal: enquanto estivermos aqui, estejamos uns com os outros. Não importa qual a sua crença, qual a sua cor, seu gênero e seus sonhos. Aprendamos. Sem o medo do anticristo, do diabo ou dos homens. Apenas medo de não sermos humanos.
Quem confia em Deus, peça ao seu Deus; quem confia em deuses, apegues aos seus deuses. Se não são deuses, mas forças da natureza que te inclinem para o bem, é o que você deve viver. Não me cabe de convencer de nada que tenha a ver com tua alma. Até porque acredito que cedo ou tarde, todos entenderão que nunca houve um único Deus sendo pregado no mundo; cada um sempre fez seu próprio Deus. Apenas seja justo como se espera a justiça de um Deus que valha a pena seguir.
E desaprenda a pensar só em você. Você está isolado em casa porque o mundo conta contigo, você também conta com o mundo... no final, só somos um quando somos parte do todo.

sábado, 4 de julho de 2020

A dificuldade de ser de quem a gente quer


Não sei se já aconteceu com você, mas muita gente já testemunhou que tem dificuldade de se aproximar da pessoa por quem têm interesse. Chegam a dizer que quando querem algum envolvimento, acham mais fácil flertar e conquistar alguém que atraia (ainda que não ao ponto de mais do que a “one night stand”), do que se aproximar daquela pessoa que faz sonhar um futuro todo feliz.
E eu já posso dar um spoiler: quando eu finalmente encontrei essa pessoa, minha melhor atitude foi esconder o medo, disfarçar a vergonha e me aproximar. Nunca fui tão feliz.
Mas, sim, eu disse medo e você pode ter pensado: mas então é questão de medo? Medo de quê?
Há 50 anos Caetano já nos lembrava que “narciso acha feio o que não é espelho”. Geralmente, ou temos consciência que ostentamos um capital estético desfavorável, mas mesmo assim queremos aquela pessoa que serviu de modelo para o padrão de beleza mundial; ou não temos essa consciência e insistimos na pessoa que serviu de modelo para o padrão de beleza mundial, ou procuramos quem se encaixa perfeitamente nos nossos sonhos, planos, gostos, afetos, apetites, fetiches...
Penso que esse último caso é o caso da maioria das pessoas.
Afora a controvérsia em relação à diferença de idade entre as partes envolvidas no relacionamento (na Grécia eles acreditavam que mais velhos deveriam se envolver com mais novos para haver crescimento intelectual destes que passariam para os próximos e assim vai), a maioria das pessoas costuma desejar quem seja como ela. E, não raro, quando nos apaixonamos por alguém a quem ainda não conhecemos nos detalhes da sua personalidade, é porque vemos algo de nós neles. Em outras palavras, acabamos nos apaixonando por nós, só que no corpo do outro (“narciso acha feio o que não é espelho”).
Mas aí começa a angústia. Porque, inconscientemente, passamos a nutrir um medo ainda maior de uma rejeição que será mais doída. Se nos apaixonamos pelo nós neles, uma vez que não nos queiram, estaremos sendo rejeitados por nós mesmos. E não tem dor maior do que descobrirmos que não servimos para quem somos. Isso tanto quando nos esforçamos para sermos a melhor versão de nós, quanto quando nos importamos menos com a aprovação dos outros.
Ora, sermos rejeitados por nós mesmos é tudo o que a nossa autoestima não precisa se quisermos continuar seres desejosos e desejantes. Então, como também dá pra ser feliz sonhando felicidade, não nos arriscamos a descobrir o que mais poderíamos viver se tivéssemos coragem de insistir na nossa alegria e no nosso prazer.
A nossa dificuldade de ser quem a gente quer é a de nos perdermos de nós justamente quando nos encontramos (e daí apostamos em tantas outras gentes, nos misturamos a elas, magoamos e somos magoados e ficamos ansiosos nos perguntando: quando alguém como eu finalmente me dirá que me quer para que, então, não precise ser eu a me arriscar? E ele/ela que lute!)

sábado, 13 de junho de 2020

A falta que a gente se faz

Acontece com muita gente. Já aconteceu comigo e já aconteceu com quem eu gosto. É como se em algum momento da nossa vida percebêssemos que fomos separados... da nossa vida.
Sim, porque a vida vive. E enquanto ela vive ela nos exige algumas adaptações, algumas resoluções, algumas concessões ao tempo e às circunstâncias que, no longo prazo, se não bem inteligidas, nos desnaturam. Fazem com que, muitas vezes, olhemos no espelho e não nos reconheçamos mais. É como se perguntássemos: quem é esse que é como alguém que eu nunca quis ser?
É sempre um perigo quando nos afastamos de nós mesmos. Porque há aquele modo de viver que a gente mesmo entende que nos representa, que nos significa tanto que serve até como um porto, um ponto de descanso repleto de um silêncio entrecortado apenas pelos pensamentos que nos assaltam e se impõem à nossa reflexão.
Acontece que esses pensamentos de silêncio são, não raro, a urgência da nossa existência. Representam a necessidade de centrarmos quem somos naquilo que, mais do que precisamos, efetivamente somos. E é claro que isso pressupõe um nível de honestidade nossa para conosco que parece ser cada vez menos comum.
Vivemos tempos de distrações. Tempos em que o mundo, as pessoas do mundo, parecem dispostas a fazer com que reajamos mais do que reflitamos antes da ação. Um mundo que prefere nos entristecer para nos manter sobre o controle da alegria programada pelo mesmo tempo da obsolescência consumerista e o preço da nossa desatenção é nos descobrirmos cobaias de experimentos que nos legam uma miséria interior, um vazio de bons sentimentos, um excesso de desejos irrealizáveis, um caminho torto em rumo de um destino inexistente.
Esse é o ponto. Como se afirmara um dia: ou sabemos onde queremos chegar, ou pegaremos qualquer estrada. E qualquer estrada pode ser o mais longo caminho para lugar nenhum. Precisamos nos conhecer, nos conectarmos com nós mesmos. Precisamos da coragem de confrontar o mundo que nos envolve, suga e que quase não nos devolve o que realmente possamos aproveitar.
Por isso é importante que de tempos em tempos silenciemos o mundo à nossa volta, olhemos para o nosso reflexo no espelho e nos perguntemos: eu sou quem eu estou?
Apenas não tenha medo de se descobrir, se duvidar, se reinventar e começar tudo de novo. Ninguém, mais do que você, gozará a delícia de se permitir gozar o que deseja viver sendo quem deseja ser. Não se limite.
E quando tudo parecer desmoronar se pergunte: “o que deixei de fazer por mim?”. Nunca é tarde para começar.

sábado, 16 de maio de 2020

Seven! Seven! Seven!


Homens são de marte, mulheres são de vênus; homens fazem sexo, mulheres fazem amor; homens gostam de safadeza, mulheres gostam de carinho... tudo bobagem. Pode até servir para vender livros. Mas é tudo uma besteira paralisante, traumatizante... Tudo preconceitos de quem, por alguma razão, quer fazer acreditar que, entre homens e mulheres, há diferença de essência só porque há alguma diferença biológica. Mas é tudo uma questão de má cultura.
E a partir daí reforçamos estereótipos dos mais nocivos, né? Menino não brinca de boneca, menina tem que fazer balé e ser delicada; tudo bem os meninos não serem cuidadosos, mas as meninas precisam desde cedo saber cuidar da casa e entenderem de fogão.
Na medida em que crescem, tudo bem o rapaz rir e fazer piadas machistas, falar mal de casamento ou se gabar da sua falta de apego; tudo bem o rapaz consumir pornografias, falar de suas venturas e desventuras sexuais (se bem que, não sei vocês, mas em se tratando de desventuras é muito raro o homem se confessar ruim de cama. Mesmo quando rumores apontam que ele é) e tudo bem ele beber demais. Mas se a mulher faz isso... meu Deus! Não vale nada, é uma tarada, adúltera, safada, dessas que, na boca de gente ruim, ouvem até que não servem para casar (e, pessoalmente, se existir isso de servir pra casar, acho que são essas que realmente servem).
Enfim... por alguma razão de excesso de machismo (e nesse vídeo eu quero conversar com vocês: vocês também acham que o machismo é fruto da insegurança do homem que não sabe lidar com os sonhos, os desejos e a vontade da mulher sentir prazer?), alguém quis normalizar que as mulheres são tudo o que o homem não é e não podem gostar como o homem gosta.
O saldo disso é que ainda se reprime e se represa a sexualidade feminina. Ainda há mulheres que no alto de suas vidas adultas “ouvem”, desde a sua memória, as censuras das avós, das tias, da mãe para que não se toquem, não se descubram. Essas mesmas mulheres que também são as que anseiam serem tomadas com força, com vontade, por mãos bem espalmadas pelas curvas dos seus corpos, por dedos ora delicados, ora ágeis a explorar os detalhes da sua pele e do seu corpo; que anseiam pela boca que não tem preguiça de percorrer sua boca, sua nuca, sua pele, pernas, cintura, ventre... seven, seven, seven!
E que falta de sorte dessas que ainda se veem envolvidas por homens incapazes de olharem suas próprias mulheres como mulheres. Homens incapazes de olharem para o seu lado e serem gratos pela mulher que tem e que lhes deseja, lhes quer. Homens que não conseguem vê-las como pessoas que desejam sentir, que até sabem ou saberiam sentir, mas que lamentam quando não sentem. Homens incapazes de perguntar se elas fantasiam porque não saberiam lidar com o fato de que no meio de uma tarde qualquer a mãe dos seus filhos, a mulher que quer pra si, ela também se pega pensando como seria bom sair correndo dali e se dar e possuir quem lhe faça a boca gemer e o corpo sorrir.
Homens que são capazes de terem amantes, mas não são capazes de serem amantes.
Por outro lado, ouvi de uma comerciante querida que muitos homens têm procurado aprender sobre produtos destinados à satisfação de suas parceiras. E que bom! Mas espero que eles saiam dos casulos e das vergonhas e parem de falar com os amigos de um jeito que parece que estar na cama com suas esposas é um favor, uma obrigação e entendam que nenhum gracejo de mesa de bar é mais importante do que o desejo da mulher com quem ele divide o seu lar.
E da mesma forma, que não tenham medo de dizer que às vezes querem, sim, um carinho, um beijo, um abraço e um cafuné. Não precisam se querer mostrar insensíveis, desses cuja única carência é por mais sexo. Homens também podem querer o afeto e a tranquilidade vindo da certeza de se saber amado.
Homem, descubra o que tua parceira quer e seja o parceiro dela. O companheiro. Que juntos vocês sejam os desbravadores do mundo misterioso de vocês dois. Não se acomode, nem ache que já sabe de tudo. Queira aprender; queira ser melhor! E descubram que é possível ser casado, ser homem e ser feliz.
Mulher, não tenha medo de querer, de confessar o que quer, de viver, se permitir. Não deixa que os outros (que não são você) imponham o que você vai ou não viver. Busque e tenha no seu parceiro, o teu amigo, o teu abrigo, teu confidente, amante e companheiro. Confie e seja confiável. O coração pede, mas o corpo também.
Aceitem-se, descubram-se, não se julguem, se tenham e se gostem cada vez mais.    

terça-feira, 21 de abril de 2020

Realidade e fantasia: dois mundos que deveriam ser um só


Quem disse que entendemos o mundo?
O mundo é aquilo que vemos, mas é também o espaço em que vivemos. Alguns têm um mundo vasto, outros um mundo que se reduz a si, mas seja como for, o mundo é o que experimentamos e diretamente ligado a como o experimentamos. Mas por que eu trago essa questão?
Um homem e uma mulher se encontram. Àquela altura seriam incapazes de dizer que o outro estava pior. O desânimo e a desilusão tanto lhes eram as sensações mais comuns que, a quem perguntasse, logo diriam que a vida que têm nem vida é.
Isolados na dor que escondiam do mundo enquanto acumulava, dia após dia foram cuidando de enterrar os sonhos que preferiam evitar sonhar e passaram a questionar qualquer possibilidade de o mundo realmente ser mais do que essa obrigação maçante de se estar vivo pensando que se está tudo bem.
Sonhos... de que servem se não se realizam de per si? Por que alguém gastaria seu tempo com desejos?
Pragmáticos, já nem assistiam aos dias que passavam e, suas vidas, ao contrário do que se deveria, não lhes somavam vida. Perdiam ela.
Mas que tipo de escolha é essa? Quem escolhe o menos? E por que razão? É excesso de frustração, falta de imaginação? Uma opção consciente por uma vida que, sendo mais ou menos, não traz o risco de se sentir falta dos melhores tempos que, se forem, talvez não voltem?
Acontece que tem um outro ponto: quem decidirá o que é o melhor da vida? O melhor da vida será o que sonhado ou o que vivido? O melhor da vida é a realização de um projeto ou o acaso bem trabalhado? E isso é importante porque os sonhos podem fazer toda a diferença. Afinal, o que separa o sonho da fantasia?
Em alguma medida nós somos recorrentemente vítimas do nosso próprio dualismo. Se não quando se fala em corpo e alma, somos dois em relação ao real e ideal, ou seja, somos dois ao menos em relação ao que vivemos e ao que fantasiamos. Nos construímos dois mundos e estaria tudo bem, não fosse o fato de que os antepomos um ao outros como se eles fossem refúgios em que segredamos nosso medo de não nos realizarmos.
Quando não tomamos cuidado, no mundo da fantasia depositamos toda nossa tristeza com o mundo dos sentidos, da pele. No mundo fantasia é que deixamos guardadas as nossas expectativas em relação a quem nos queremos no mundo e para o mundo e o que nos queremos desse mundo. É nele em que encerramos a nossa vontade de sermos mais felizes do que tristes e é onde sonhamos sonhos de grandeza na vida profissional, na vida familiar, no sexo, no amor. É nesse mundo em que somos imortais e, tudo o que queremos, acontece sem nenhum tipo de arrependimento ou frustração porque na fantasia não precisamos nos adaptar ao mundo. Ele é para nós. Ele é feito sob medida para alegrar. E ele alegra. Sim. Porque ao nos imaginarmos felizes e campeões em tudo, sentimos aquele acréscimo de autoestima que nos faz nos sentirmos incríveis, pelo menos nessa fração de segundos em que olhos abertos brilham o sonho acordado.
Mas no mundo da fantasia, a autoestima esfria mais do que aquece. Porque o calor é questão de química e física realizadas no atrito próprio do encontro que estimula sentidos que se acordam à simples presença de quem é palpável porque é real.
Sonhe-se o melhor dos sonhos e ainda assim ele não se fará sentir no corpo. Porque a fantasia não é sensível como a realidade se faz sentir. E, nesse mundo da realidade é onde, não poucas vezes – por alguma razão de circunstância e conveniência – nós suportamos a desambição, desistimos das revoluções e das atitudes que nos moveriam para além da nossa própria esperança de uma vivência melhor.
Esperança... bendita ou não? Porque a fantasia e a realidade não precisam ser polos distrativos. A fantasia pode – deve – ser o combustível das ações no mundo real, a busca pela certeza de que a vida não foi dada para o mais ou menos e que esse mundo que tantos fazem que seja dois, deve ser um como uma é vida e como uma são tantas as oportunidades
Um homem e uma mulher se encontram. Àquela altura seriam incapazes de dizer que o outro estava pior. O desânimo e a desilusão que lhes eram as sensações mais comuns não passavam da falta dessa esperança. Nada mais eram do que a sensação de que tudo o que quiseram foi uma construção arquetípica a que conduzidos pela arte, pela poesia, pelas histórias que consumiram, mas que, em si, nunca realizaram.
Mas entrevistássemos suas almas e elas confessariam que a desesperança é só o disfarce encerrado no mundo que trancafiaram no subsolo dos seus sentidos. A desesperança não passaria de um manto a espera de ser descoberto, como aquela máscara de ferro que por anos manteve cativo aquele que nascera para ser rei.
E fossem de fato práticos, deixariam de temer a esperança de se realizarem e confiariam que a vida é dádiva dada a quem não se economiza e se lança e se arrisca e se dá sem medo porque viver é isso: é ser de quem te tem e ter quem da gente se faz.
Ah... mas se não acontecer pelo menos não perdi a delícia da fantasia! Mas é onde você se engana. Não há fantasia perfeita que seja melhor do que a realidade e por mais que você espere demais, basta a coragem de entender que o que você quer não é questão de chegar pronto, mas de saber até que ponto está disposto a revelar o que deseja como forma de saber até onde se pretende chegar.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Foco em viver (contemplação)

As pessoas parecem que não vivenciam a intensidade de mais nada além do próprio medo, da vaidade e do orgulho. Estamos cada vez mais incapazes de contemplar. Tudo é superficial.
Se algo dura mais do que 3 minutos a gente já divide a nossa atenção. Perdemos a condição do foco. Assistimos a TV mexendo no celular (na verdade, muitas vezes a TV virou rádio). 
Filme? De que adianta o ator treinar uma expressão, o diretor escolher um ângulo específico de câmera, o escritor se esmerar no texto ou o compositor traduzir as emoções em música se entre um frame e outro eu cuidarei de ver se alguém falou comigo ou reagiu a mim? 
Quando estamos conversando via internet, enquanto um digita a gente vai em outro grupo, em outra conversa; às vezes conversamos pessoalmente, mas enquanto o outro fala, nós — de soslaio ou acintosos — corremos os olhos para tela do celular. E nisso ficamos mantendo vários diálogos sem nos dedicarmos verdadeiramente a nenhum. 
Se você reparar, quando colocamos uma música, muita vez é só pra que haja algum barulho. Sequer podemos dizer que realmente a ouvimos e escutamos. Se alguém perguntar de um solo de guitarra ou de um verso específico, é capaz que nem tenhamos prestado atenção.
Queremos tanto ficar vivos, mas pra que se vivemos como se nada mais importasse além de estar em todos os lugares sem pertencer esse dedicar a nenhum? É como se a nossa ambição fosse experimentar tudo, mas sem sentir nada. Por medo da dor renunciamos até a alegria.
Triste demais.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Sonho que gostei de sonhar

Premissa: Tempos atrás a personagem conheceu uma terapeuta tântrica. Há muito tempo não a vê, mas há poucas noites sonhou com ela. Resolveu lhe contar como foi:


“Eu te procurava porque precisava ser atendido por você, precisava do que você sabe fazer. Mas naquele dia parecia que não seria possível. Você já me recebeu dizendo que, justamente naquele dia, estava trabalhando com massagens que direcionavam a ‘viagens interiores’, mas não poderia fazer comigo porque eu não ainda não estava pronto. 

Ainda assim, você me pedia pra sentar numa sala onde eu te esperaria por algum tempo.

Eu fico sem entender, mas teu sorriso era tão cheio de paz e autoridade (e até compaixão) que eu só obedeço. 

Depois de um tempo você volta vestindo um tipo de quimono azul com detalhes dourados e vermelhos. Mas ele era diferente. O tecido era como de seda, com mangas largas e descia pelo seu corpo cobrindo desde o teu colo até tua cintura, mas aberto apenas na lateral do teu abdômen, ali na região das tuas costelas. Ele também era cumprido até exatamente acima do joelho. 

Você também tinha um tipo de faixa azul na testa e que segurava teus cabelos. 

Disse que me ajudaria mesmo sendo prematuro e me pediu que eu sentasse na cadeira e não tirasse os olhos dos teus olhos.
Pegou minha mão direita e massageava a palma com os dois polegares. Em silêncio. E eu não podia tirar os olhos dos teus olhos. 

De repente, não sei como e nem de onde, começou uma música instrumental. Você me dizia pra respirar fundo e segurar o ar por 15 segundos. Desceu pro meu pé esquerdo. Dizia que balancearia minhas energias.

Em pouco tempo meus olhos eram vendados e você dizia que era pra eu deitar e aceitar o que viria. Pra confiar em você. Que não seria você a me tocar, mas você estaria ali o tempo todo porque era importante que eu não perdesse o contato com a tua energia.

Eu tinha sempre que respirar fundo e demorar pra soltar o ar. E a cada vez era como se o mundo girasse e eu fosse apagando enquanto sentia como se pés andassem sobre mim ao mesmo tempo que me descolava do chão. 

E eu te sabia ali, sabia que você estava ajoelhada e sentada sobre teus calcanhares, mas não conseguia te ver. 

Me vinha uma angústia porque era como se onde eu estava só fizesse sentido por tua causa e era bom estar ali. Mas eu precisava ter a certeza de que era verdade e a verdade era você. 

Até que a música instrumental mudou pra um vocal. Não identificava a letra, mas era como se ele mandasse em mim.  E, descolado do chão e rodando, me via com o rosto pra cima e meu corpo planando lentamente até eu sentir o tapete. 

Eu sinto uma mão no meu peito dizendo ‘vem’. Eu abro os olhos e te vejo sorrindo. Agora o batom que você usa era azul e a roupa que você vestia era o mesmo modelo, mas verde e lilás. Não parecia haver paz nos teus olhos. O que tinha era força e domínio. 

Eu tentava entender o que era o ‘vem!’ que você dizia com um sorriso completado por um olhar firme.

Você estava entre a porta e eu. 

Levantou-se e foi andando de costas, virada de frente pra mim. 

Continuava balbuciando ‘vem’.

Eu me levantei. Não vestia nada. E não sabia como nem em que momento fiquei assim. 

Vou na tua direção e isso parecia certo. Você para e encosta na porta. Diz ‘vem!’ (uma última vez). 

Dessa vez abre os braços, me abraça e fala no meu ouvido: ‘agora vai ficar tudo bem. Que bom confiou e eu esperou’.

Abriu a porta, alguém me ofereceu um terno azul é uma gravata tbm azul só que mais clara e você disse que era pra eu ir. 

Eu me viro enquanto você caminha indo embora pro outro lado e se despindo daquele quimono. 

Eu vejo a sombra do teu corpo que sei nu, mas não vejo nu. Eu te pergunto quando vou te ver de novo. Você responde algo do tipo: ‘talvez nunca. Ou sempre que precisar.’.”

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Revelações podem ser mais que desabafos: pensando os amores que tive em mim (que amor foi o meu?)


Cada vez acredito menos no discurso de quem é feliz sendo só de si. Não. Não acredito que é possível ser feliz sozinho. E talvez porque ainda que muitas vezes eu me sinta como se o fosse, na verdade nunca o fui. Nem sozinho, nem tão triste.
Também descobri, de mim, a falta de medo das minhas paixões. Talvez um pouco de medo como reajo a mim apaixonado. Gosto de estar, gosto de alimentar isso, mas não aprendi a manter. E nem sei se dependeria de mim me manter intenso na paixão. Mas em tempos que se fala tanto em responsabilidade afetiva e emocional, questiono-me se sou irresponsável nalguns encontros ou se consequência (sem ser vítima) de uma inconstância contra a qual luto, mas de ordinário perco.
Talvez ninguém que me leia saiba e tampouco se interesse, mas recentemente me apaixonei como há tempos desejava. Não que me faltara paixão em histórias outras. Mas dessa vez foi diferente porque eu estava diferente. Sim, porque poucas vezes me vi tão disposto a descobrir que era possível ser tudo o que ainda não tinha sido para alguém e que muitas vezes duvidei que um dia seria. As noites de sono eram precedidas dos melhores pensamentos, desejos e fantasias. As manhãs já começavam na expectativa de algum aparecimento de quem, por um tempo, não só aparecia como permanecia. Mas a distância que mantive dela foi a mesma que já mantinha desde quando sequer a conhecia.
Apaixonei-me como nunca. Não vivi como sempre. Sofri? Talvez. Me arrependi? Jamais! Desisti? Exatamente de quê...?
Porque é assim que acontece: é um ciclo de correspondências e falta de correspondências. Já quis sem ser querido; já fui querido sem querer; algumas vezes quis e fui querido; outras tive quem não me queria tanto quanto eu lhe tive sem também lhe querer. A maior parte disso não tem ganho, não tem lucro, é só perda.
Mas a vida vive, segue, não para e passa. Ninguém sabe o hoje, quiçá o amanhã. Muitas das minhas melhores relações me surpreenderam em tudo o que tinham de improvável, enquanto as que mais me pareciam naturais e certas (e desejadas) não passaram de fantasia irrealizada.
E algo que sempre me foi curioso foram algumas ocasiões em que ouvi de mais de uma pessoa que às vezes se procurara em textos postados aqui. De fato, escrevi aqui sobre poucas, mas sempre torcendo para que fosse lido por aquela que era para quem escrevia. Um jeito de me expor sem me mostrar, mesmo que me mostrando e me expondo. Me movia – ainda me move – um senso de cumplicidade que viria nos únicos olhos capazes de me entender que era a ela a que me referia (pois bem, minha analista também entenderia).
Textos, poesias, declamações, pensamentos... havia o que era para o mundo, havia o que era para o que seria o meu mundo. E até nisso mudei.
Vejo em mim que cada vez mais sou cada vez menos quem fui. Não mais aquele descrente da própria capacidade de gostar do que vive sempre constantemente atento só ao que tinha à sua volta por viver, desatento com o carinho que ofereciam, a paixão que nutriam ou mesmo o amor que dedicaram. Também por isso é que me julgo melhor do que antes. E não porque sou condescendente comigo – jamais me permiti gentilezas a mim próprio. Julgo-me melhor que antes porque hoje quase consego estar em paz comigo.
Ainda não sei quantas histórias e paixões e desilusões me aguardam. Talvez sejam muitas, talvez tenha acabado todas. Ainda sou aquele que espera algumas certezas que nem sei se existem. Mas também não deixei de ser aquele que há pouco tempo se descobriu disposto a ser quem ainda não foi e nem deixei de ser aquele que creu que poderia alcançar viver o que – e quem –  lhe faltou.
E sem ser ansioso. Sem deixar de ser paciente. Sem querer um dia de cada vez a história que não terá um final feliz porque será toda ela feliz. Nem sempre fácil, nem sempre linda, mas de saldo feliz.
Sei que o tempo correu rápido e espero que ainda haja mais por passar (de preferência sem correr). O que não quero é ser quem se perde da vida quando deixa de viver o que tem, quando fica tempo demais desejando conquistar o que não dá. Quero que seja fácil se um dia chegar a hora de, finalmente, me casar.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Quem virá despetalar pétalas...?


I


Sinto minha dor,
Mas minha dor me é estranha
Ela dói como se me tomando aos poucos, mas                                                        por inteiro.
E me prende... me enclausura.
Mas não me mata que é pra que doa
E não me sufoca que é pra que eu sinta.
Minha dor me é desconhecida porque nem eu mesmo me aproximo dela.
É ela que me envolve a mim.
Sei que ela há e que ela está nalgum lá e é nesse lá que a mantenho
Talvez culpado e leniente no meu jeito intransigente de não me dar.


II

A verdade deve ser mesmo a de que não amo porque não entendo o amor e não sei amar.
Desconfio do carinho na medida que me incho de amargura.
E não devo estar errado quando entendo que não tenho ninguém.


III

Por que alguém se comoveria de uma dor que escondo?
Por que alguém se interessaria por alguém que se esvai em cada lágrima que não chora pra fora?
E como esse seria capaz de gostar de alguém se não gosta nem de si?
Mas gostei. E me odiei por cada vez que gostei de gostar de quem gostei.


IV

Desculpem-me as vezes que pareci gentil.
Desculpem-me as vezes que pareci interessado.
Desculpem-me até as vezes que pareci apaixonado.
Não sei se aquele era eu.
Quem sou eu para além da agressividade que, minha, se volta contra mim?
Quem sou eu para além da indiferença que imponho a que os outros nutram-na contra mim?
Porque se não é minha culpa, então é o que?


 V

De egoísmo em egoísmo e minha dor não se deve ao acaso
Sou a soma de todo desprezo que comecei primeiro por mim e prossegui
No fim, sou o inatingível de mim mesmo
Aceitei que não me aceitassem humano
E logo fui eu que esqueci de ser.


VI

Pus-me à distância de todos e até de mim.
A imagem é de alguém (eu) que se abandonou.
Se pela primeira vez me notarem e me virem com atenção, eis que me verão me dizendo adeus para mim.
E vejam lá: sou eu partindo sozinho enquanto me deixo sozinho.


VII

Sou o terremoto e o cataclismo que em mim cindiram alma e corpo e desaprisionaram o espírito.
Agora vago vário e vazio.
Deambulo frágil, cansado. Exasperado mesmo.
Tomo até o ar por inimigo. Se ele não falta, vivo.


VIII

Sou a soma de todos os nadas que tive, que tenho e que terei a oferecer.
E por isso o nada é tudo o que ofereço.
E por isso sempre ninguém quererá.
E me revelo não por querer louros de glórias malditas: só quero paz e quero escuro.
Quero o silêncio só quebrado pelo ruído cupinal na madeira. E nem esse ouvirei.


IX

É como se tivesse embebido da minha própria peçonha e é isso que me escurece a visão, me endurece o peito e me emudece a voz.
No fim, sou a razão do meu mal (e de mais quantos?)
Enquanto o tempo me escapa inútil, minha mente gira como um carrossel de rostos e corpos e risos e                                                                                              sorrisos que poderiam ter me feito bem.
Mas mesmo o desejo desses e por esses se esvai em mim e comigo.
Até esse desejo passa e não se justifica nem no começo, nem na desdita.
Sim. Em algum momento eu as teria feito mal
Então, que se prostrem à providência que lhes guarda bem e lhes mantiveram distante de mim.
Adeus para elas também.


X

Tóxico não é o que injeto, mas o que ofereço.
Apartai de mim vós que não me conheceis e alertai aos que não têm a mesma sorte.
E quando ouvirem de mim, não lamentem meu fim.
Não fiz o que era preciso.
Não faltarei ao encontro, à reunião, à festa...
Só faltarei à saudade.
Mas enquanto vou, é ela que me invade.
Oxalá Deus se desembuce e consiga, pelo menos Ele, me explicar.


20 de setembro de 2019
6h34