Era daqueles dias em que se
acorda sem precisar fazer nada. A ideia de passar as próximas 72 horas na cama
lhe era das mais sedutoras. Não tinha planos, não tinha família, não tinha
vontade, não tinha nada. Mas de repente tudo isso parecia estranho demais.
Não que fosse dos mais festeiros,
dos mais presentes ou dos mais afetivos. Sempre mais ocupado consigo, pouco lhe
importavam as convenções e as expectativas. Bebia quando queria beber, dormia
quando queria dormir, satisfazia-se quando queria se satisfazer e, pra tudo isso, nunca achou
qualquer dificuldade que lhe fosse maior do que a que ele mesmo se
representava.
Era daquelas pessoas altivas,
indiferentes, mas que prestam atenção. No seu íntimo se ria de todos, pareciam banais. Ao mesmo
tempo, não lhes negava qualquer apoio, uma palavra ou um aperto de mão.
Acostumado a ser dos que são procurados, desaprendeu a procurar. Suas chegadas sempre só menos caladas do que suas saídas. Não se sabia perceber, nem ser percebido, tampouco sabia se era alguém cuja presença alegrasse ou a ausência se fizesse sentir. Mas se era solução de
tantos, por que não seria, ele mesmo, a solução de si?
Lia tudo. Lia livros, lia olhos,
lia almas, lia corpos, lia mãos. Assustava. Parecia sempre saber mais do que
revelava, mas para si e consigo, sempre pensava saber menos do que precisava.
Curioso de todas as vidas, buscava em quem via o que não era mostrado, o que era calado e qual era a razão do constrangimento de se permitirem ver... qual o medo que as pessoas têm de que saibam quem elas realmente são? Ele sempre sabia. Presunçoso, mas com suas razões...
Mas estava naqueles dias em que
se acorda sem precisar fazer nada e ele não precisava fazer nada. No entanto, de repente ele precisava fazer algo, e fazer algo era fazer tudo, era viver tudo, experimentar tudo,
não deixar nada de fora desse tudo que nascia de dentro de alguém que até então não precisava fazer nada.
Pela primeira vez a cama foi
ambiente inóspito. Logo ali em que viveu seus melhores momentos seja dormindo
parado ou acordado em intenso movimento, agora lhe parecia como a cama do
faquir que ele não era. Levantou-se.
Depois de muito tempo, deu-se com
o Sol. Já nem lembrava que Sol havia, não que não enxergasse a luz do dia, só
não parecia mais forte do que o conjunto de trevas que o ocupavam desde si.
Só que agora havia cores, via cores. E eram
cores naturais. Diferente do que ele era. A natureza que se lhe apresentava –
ele bem sabia – existia desde antes dele e ali continuaria quando ele não fosse
mais, mas era diferente. Ele via mais do que enxergava no todo do tudo que
reparou. Teve sede e viu-se quando à margem da água cristalina que precisou - e se deixou - beber. E não é que até o reflexo turvo da água que
se movia lhe mostrava outro alguém que ele já não sabia que era?
Depois de muitos anos, quis
correr. Depois de muitas noites, quis amar. Depois de muito tempo, quis ser
tudo de novo aquilo tudo que não poderia ter deixado de ser.
Se antes tudo parecia tarde,
agora tudo parece estar no momento, esse parece ser o momento. É urgente, sim, mas é o momento. O momento do
novo, do ousado, do abusado, do excedido e do fim do soberbo que, ao menos em
arrogância, pouco fez questão de ser comedido.
Ouvia as outras vozes que antes
pareciam tolas. Agora só parecem o que, realmente, são: vivas.
Assistia outras pessoas que antes
pareciam “apenas” vivas e via, agora, o que elas, realmente, são: gente.
Assistiu aquela gente e
descobriu-se quem realmente é: mais um.
Mas não se sentiu mal por ser
mais um. O mais um lhe fazia parte de um grupo que pensava que não tinha e lhe
unia a uma história que apenas sabia que existia. Agora era mais um que queria
sentir o que já há muito tinha calado, enterrado e que pensava ter até matado,
mas que tão-somente dormia.
Quis ligar para os números que já não tinha; quis ouvir as vozes que há tempos não ouvia e mesmo sem qualquer
sentido, quis até montar ao cavalo que nunca teve e escalar o monte que nunca
viu. De repente era mais um dentre tantos que, mesmo se sabendo um, não se queriam ser apenas esse um. Lembrou-se
de quem era, antes de ser quem se fez. Lembrou que amou, lembrou que gostou,
que quis, foi querido, gostado, amado... e odiado também, mas agora sentia e já fazia muito que não lhe era
normal sentir.
(E de repente se pergunta: Será culpa desse sol que sempre
houve, mas que parece pra ele só ter nascido agora? De onde vem a luz que lhe sangra a
escuridão e lhe permite que renasça vida? Vem do infinito e desde ele entra ou já estava guardada
no peito de quem por medo de amar, ao autoexílio condena? Foi a noite que perdeu
a graça ou ela nunca passou de jazigo que guardava um corpo que vivia sem vida?)
O tempo passou, mas não acabou e,
então, se há tempo e se há vida, faça-se da vida a vida que tem que ser. Dança,
corre, salta, beija, ama, deflora, namora, permite, se deixa (até boceja), mas
logo deseja e busca e acha e toma e se embevece seja de amor ou de cachaça.
Até a ressaca que há muito
esquecida, agora surge como uma parte da vida que não pode passar. Tudo urge,
mas urge com calma...
Calma... os dias não lhe roubaram
experiência, só fizeram-lhe cético. Já não sucumbe aos primeiros impulsos. Ainda não levantou. Não
ligou para todos os números, nem ouviu todas as vozes. Não subiu nenhum monte a
cavalo. Mas agora sentia... até ausências e quereres que não mais tinha, agora ele tinha.
Levanta-se da cama,
espreguiça-se, deixa a cama agora já é passado (ou começo de futuro), por ora, só deixou de ser
cenário. São 72 horas para fazer tudo, inclusive nada. Mas quem disse que fazer
nada não pode ser tudo o que se tem para fazer?
Talvez mais tolerante, talvez
menos ranzinza, talvez mais permissivo e menos possessivo, apenas sabe que algo
mudará, mas não tem pressa. O tempo que tem é o tempo que lhe basta acabe ele
daqui a muitos anos, acabe ele na semana que vem. Quanto à espera? A espera até
agora lhe fez consciente de que viver é bom quando se tem consciência da importância
que tem a vida da gente, mas que no fundo, a vida da gente – de toda a gente – é bem
pouco importante pra vida dos outros que têm a sua própria vida assim como a vida da gente.
Mas é por aí?
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