quarta-feira, 22 de junho de 2016

Um passo para a humanidade


"Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?"
(Fernando Pessoa - Poema em linha reta)


Na era das fortalezas, ser de verdade pode ser o maior ato de coragem.
O mundo nunca foi tão propício à propaganda do homem por si mesmo, como tem sido os tempos atuais. Todos têm a plataforma que garante a sua autoexposição e, então, esbaldam-se em se fazerem vitoriosos e felizes a tantos quantos sejam os olhos que recaiam sobre si.
Do alto do narcisismo de onde anunciam a plenos pulmões serem bons e estarem bem, homens e mulheres reforçam um papel outrora relegado aos mitos heroicos e aos grandes campeões: anunciam-se como grandes vencedores. E isso a um tempo em que se percebe que a vida, hoje, dá-se sob uma crença de que o sucesso está ao alcance de todos e que tudo é apenas uma questão de atitude.
Contudo, essa pregação, ao invés de acolher o maior número de pessoas sob o seu manto, finda por excluir um sem número delas que vivendo a vileza de dias que parecem não dar certo, não têm interesse em disfarçar a melhor vida que não têm. São pessoas que muitas vezes estão presas a trabalhos de que dependem, mas de que não gostam, ou que carregam dores de amores que amaram mal amados, de famílias que nunca funcionaram ou de sonhos que nunca se realizaram e a quem, muitas vezes, o simples fato de perceberem que o dia amanheceu de novo, já faz sofrer.
E, apesar disso, essas pessoas são obrigadas a conviver com uma série de outras pessoas que não vivem tão melhores, mas querem continuar anunciando a felicidade que não têm, o amor que não vivem, a alegria que não sentem, a dieta que não fazem, a disposição que só lhes falta, o dinheiro que nunca sobra e o sucesso que não passa de história.
Não bastasse, quando aquelas sofrem suas dores, quando têm coragem de se anunciarem tristes, vazias e descontentes com o que vivem, ainda são mal vistas pelos que “só sabem o que é viver bem”. Riem delas. E talvez porque a verdade de sua tristeza reflita a dor que o outro luta para esconder de si (“não me diga tua tristeza que é pra eu não lembrar a minha”).
Em tempos de “ditadura das aparências” não se pode se mostrar fraco, não se pode ser titubeante, nem passional, nem vacilante. O mundo parece exigir cada vez mais altiveza, robusteza, além de mostrar uma indiferença cada vez maior em relação a muito do que antes era considerada virtude, mas que agora, não raro, é pusilanimidade. Não se admitem os que choram, nem os que sofrem, nem os que se confessam ou se declaram incapazes de seguirem sós. A esses é reservado o ridículo. São anátemas. Escória.
Está na hora de repensarmos as nossas verdades e pararmos com a estupidez de acharmos que a imagem que fazem de nós (e que fazemos dos outros) é que é importante. Está na hora de libertarmos uns aos outros da obrigação de parecermos sempre mais. É preciso nos voltarmos à realidade da nossa humanidade e da humanidade do outro. Não nos querermos semideuses, infalíveis, irresistíveis, admiráveis. Querermo-nos apenas humanos – e com tudo (alegrias e dores) que se carrega dessa condição que não nos faz menos, mas que na melhor reunião dos melhores valores faz descobrir que podemos ser, aí sim, de verdade, sempre mais.
Gente para ser gente só precisa de paz. Não precisa parecer ser mais.

domingo, 19 de junho de 2016

O tempo passa... mas nem tanto

A ansiedade é um sintoma normal quando se vive um tempo em que a vida é urgente. Num modo de viver cada vez mais acelerado, o mínimo descuido incorre em que cada conquista se faça acompanhar pelo sabor amargo de um atraso culposo, como se independente de quando, já fosse sempre tarde.
Perdemos a noção do tempo de sermos quem somos. Nos ocupamos tanto com quem nos quereremos um dia que esquecemos que, mais essencial que almejar, é ser, e então, sem que nos apercebamos, desconhecemos quem um dia nós fomos e mal cuidamos de quem um dia seremos. E daí a existência pesa. Desamparados da certeza de vivermos a verdade de uma consciência que se basta no conhecimento de si mesma (de nós mesmos), é comum que passemos a buscar em tudo o que não sejamos nós a completude do vazio que vem da falta de se bastar “eu”.
É quando creditamos no outro (e também que será em outras externalidades que acharemos) a paz que, por certo, não vem – e nem poderia vir – de fora. Não há solução para angústia que não parta da serenidade de se saber senhor do trato das circunstâncias tais como elas se apresentam. É só nessa serenidade, ou seja, no oposto do que é a ansiedade, que se alcança a autorreflexão necessária para entender que há uma razão para sentirmos o que sentimos e pensar o que pensamos; em suma: para vivermos e experienciarmos, mas principalmente, entendermos o que vivemos e experienciamos, precisamos de tempo para nos reconhecermos (e, ainda, quantas vezes forem necessárias, nos recomeçarmos).
Nos reconhecermos faz parte de um processo de autocontemplação muitas vezes custoso porque dolorido. Implica em verdades que nos evitamos. Reconhecer-nos a nós mesmos é saber que a culpa maior é sempre nossa por mais tentador que seja culpar o outro. Só que para chegar a esse grau de desprendimento é necessário ouvirmos a nós mesmos em detrimento de todo o barulho do mundo que vive do lado de fora de nós. Acontece que à medida que vivemos, parece que precisamos mais e mais desse barulho do lado de fora da nossa existência e justamente como uma tentativa vil de que ele abafe o barulho ensurdecedor que vem do silêncio do nosso vazio e que insiste em nos fustigar sob o reflexo de tudo o que não terá passado de fracasso acumulado ainda que na forma de sucesso tardio.
Mas esse é o ponto em que deve haver a principal mudança. Ao invés de nos atermos às perdas e ruindades da vida, aos “nãos” e aos desencantos, ou mesmo em pensarmos que carregamos toda desdita ou que somos mal vindos às vidas que sempre quisemos bem vindas, precisamos encontrar a nossa parte que vale a pena e a lembrança dos momentos em que as pessoas pareceram gostar de nós e pareciam felizes porque havíamos, porque nos tinham e porque éramos quem fomos num tempo em que fazia sentido sê-lo. Por certo sempre haverá uma boa dose de boas lembranças capazes de combater as lembranças mais injustas que tentem nos convencer de que nossa passagem é insignificante e errante ou que tudo o que oferecemos só servia para se recusar.
E daí a gente vai viver em paz com o que tem, sem precisar se preocupar com o que virá. Porque o tempo passa e o futuro até vem (mas não tanto que mude pra pior o ontem de ninguém).