quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A vida é do único jeito que poderia ser

Uma das principais violências que cometemos contra nós mesmos é julgarmos, lamentarmos ou condenarmos as nossas atitudes passadas.
Não é raro se ouvir alguém dizer que gostaria de voltar ao tempo em que era mais jovem, mas tendo a cabeça que “tem hoje”, como se movido pela esperança de que tendo uma segunda chance, refaria suas escolhas e acertaria tudo o que julga tenha errado.
Aliás, talvez muitos dos descontentamentos que se acumulam nas vidas carregadas de tristezas se devam, justamente, a essa mania inútil de fantasiar uma vida diferente a partir de escolhas diferentes. Angústias que vêm de insistir em desejar outra vida ao invés de viver a vida que agora está. Afinal, toda vida ideal vai parecer melhor do que a vida real.
Quando afirmo que isso se constitui em uma grande violência que fazemos contra nós mesmos, é porque fazer isso é sermos injustos para conosco. Analisar o passado sob as circunstâncias do presente (sob sua realidade) sabendo o que deu certo e o que deu errado é cruel com o “eu” que quando decidiu era apenas resultado de seus afetos mais diretos. E afetos esses que, hoje, são apenas memórias.
Por mais que consigamos ter claro quais foram aqueles afetos que nos levaram a escolher (um caminho ou outro, essa ou aquela, ir ou ficar), pensar o sentimento é diferente de senti-lo. A decisão é tomada sob o impulso do sentimento, sob o impulso da vontade de fazer dar certo o que se quer. Ou seja, pelo que pulsa e não pelo que é memória do que um dia pulsou e agora não causa qualquer apelo.
Então é necessário que tenhamos coragem de entender que a vida é da única maneira que ela poderia ter sido. E, a partir disso, que tenhamos coragem de perdoar. Perdoarmos a nós mesmos, mas também aos outros – àqueles a quem conveniente e comodamente buscamos imputar certas culpas pelos nossos descontentamentos com a vida que levamos.
Não adianta olhar pra trás e pensar que poderíamos ter feito diferente. Tudo o que se fez, se fez da única maneira que poderia ter feito e cada decisão que se tomou era a única que decisão que poderia se ter tomado. Pensar que poderia ser de outro jeito é apenas se iludir pra fazer doer; é tentar acreditar que há uma força que rege e que desenha diferentes possibilidades, quando, na verdade, a vida é vivida na exata forma do que somos (é partir do que gostamos, esperamos, desejamos...).   
E é então que falo com quem me lê: todos os caminhos que você trilhasse te levariam para o mesmo ponto a que você chegou e isso pelo simples fato de que a tua vida se fez – e se faz – da única forma que poderia se fazer. Nunca te houve duas formas de viver. E daí que sofrer por tudo o que não fez ou pelo que decidiu ou deixou de decidir é mera distração que apenas te afasta do mais importante: a vida não vai parar de viver enquanto você se lamenta. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Poema da memória do que foi feliz (ou o tempo que não vai voltar...)

Conto de um tempo que não contava
Pensava que memória não doía
Pensava que memória só passava.

Conto de um tempo de alegria
De um dia em que a vida me agradava
De um dia em que eu vivia o que eu queria.

Conto de um tempo que passa sem que fosse
Não vira cinza. Renasce enquanto espero.
Conto de um tempo que não volta nem que seja pra ver se dessa vez não erro.

Tempo de um tempo que não dá mais tempo...

Quem me dera o tempo contasse ao contrário
E então eu vivesse o que não foi,
Mas que um dia eu quis que tivesse sido.

Quis as mãozinhas, os pezinhos e o cheiro de shampoo...
A casa de varanda e o almoço de domingo
A briga por causa da conta do fim do mês.

Lembro que a canção dela EU SEI qual era
E que até de novela a gente gostou
Mas que de tudo o melhor era ela.

Já faz tanto tempo que lembro há tanto tempo
De como era bom esperar o melhor dia chegar
De como foi ontem - sem ser - todo abraço que lembro só pra lembrança doer.

Já faz tanto tempo que lembro há tanto tempo
De como é bom saber que ao menos houve esse tempo
E de como não é bom apenas saber que foi bom enquanto durou.


*ouça o poema aqui.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A dor de ser narciso (e a necessidade de se descolar do ser)

Gostar de si mesmo e dos resultados de si e de ser.
O que à primeira vista parece o ideal de uma vida bem sucedida, não raro se mostra razão de angústia. Nem sempre estamos preparados para estarmos bem.
Um olhar mais atento e percebemos um aspecto bastante particular e que presente na maioria das pessoas: lidamos muito melhor com a falta de satisfação. Tanto com a nossa insatisfação quanto com a insatisfação dos outros. E esse é o ponto. A não ser que sejamos aquela classe egoísta que não cuida do que não seja de si mesmo, o nosso “estar bem”, invariavelmente, depende de ser confrontado com o do outro. E é quando pode doer.
O bom narciso é aquele que não quer ser feliz sozinho. Ele até pode querer ser mais feliz, mas não sozinho. Isso porque, em razão de seu narcisismo, carrega em si a vocação de guiar os seus em direção de uma vida sempre melhor. Logo, a desventura experimentada por estes lhe dói na exata medida que aponta a sua inaptidão para o mister que se impôs e é quando ele decide que não pode ser feliz enquanto os seus são tristes. E é quando o que podia doer, dói.
O narcisista é sempre duro consigo mesmo. Tiraniza-se na medida em que quer ter o controle de tudo quanto ele depende para estar bem e na medida em que vai sendo dominado pelas expectativas do êxito que deveria ser inevitável, mas que falta, vai sendo ele próprio o palco de toda sua desolação. E, de certa maneira, tudo o que lhe parece certo sobre os seus dias é que ele sofra: afinal, por que deixaria de sofrer se os outros que ele gosta ainda sofrem?
O sofrimento do outro é o espelho que reflete o narciso que só consegue achar bonito o que lhe leva a enxergar a si. Mesmo na dor do outro não tende a ver outro que não seja ele mesmo sofrendo a incapacidade que não é sua e que só há em si.
É aí que colocar sobre si o peso de uma felicidade que não é só sua e de um sucesso que não tenha a ver com o esforço que é seu é de uma violência consigo que só se explica na percepção de quem entende que merece sofrer mais justamente por ser quem é. Quem se julga especial não pode gozar um sofrimento qualquer.
Mas o querer o bem do outro não pode ser visto como uma missão, mas como humanidade. Tampouco, alguém tem o direito de arvorar a si a condição de fazer o ser de alguém. Se a empatia é questão amor e humildade, não se pode querer o bem do outro como um meio cujo fim seja a satisfação desejada pelo narciso desejante.
Em tudo isso, tem-se que a hipótese de uma vida em que se goste de si e do que se fez com ela é possível e necessária, mas ao mesmo tempo em que se é imperiosa a constante reflexão sobre o ser na essência exata de si – e não na do outro. A felicidade do outro é responsabilidade dele e de suas escolhas e se ele é um espelho para a felicidade de alguém – e até do narciso que se projeta nele (para ver a si) – que seja apenas no confronto em que se mostra que a vida vive e segue independente de você escolher viver e ser feliz. Mas que então é melhor escolher e ser... (sendo).


*pintura: "Eco e Narciso - John William Waterhouse - óleo sobre tela - 236 cm X 107 cm - 1903 ( Wlaker Art Gallery - Liverpool, Inglaterra)