Acho que ando correndo tanto e
tão desatento que, se não tivesse sido lembrado pela manhã, talvez não me
recordaria que hoje faz 13 anos que meu avô pai de minha mãe faleceu.
Lembro-me como se fizessem menos
de 13 horas (e as vezes dói como se fosse assim): era uma quinta-feira quando, 24
de junho de 1999, por volta das 8 horas da manhã minha mãe abriu a porta do meu
quarto para me acordar. Acordar a mim que, na noite anterior, havia me
prontificado a estar com ela naquele dia de cuidados no hospital.
Naquele instante, tomado por um
sono que me é comum até os tempos hodiernos, disse a minha mãe que não iria. Preferia
ficar dormindo.
Compreensiva, deixou-me na cama
como estava e foi terminar de organizar o que precisava.
Menos de cinco minutos depois e
pulo da minha cama num estalo, dirigindo-me ao banheiro único da casa em que
morávamos, dizendo-lhe que me aguardasse apenas um pouco e eu a acompanharia.
Naquela manhã fomos ao hospital
ela, minha vó – sua mãe – e eu.
De Guarulhos até o bairro de
Santo Amaro onde ficava o hospital foi uma longa caminhada num trânsito de São
Paulo que, há 13 anos não era menos do que hoje.
Lá chegamos; encontramos a irmã
de meu vô e sua filha que ali ficaram para lhe prestar assistência. O quadro
não era auspicioso, mas no semblante havia certa paz.
O dia foi correndo minuto após
minuto como nunca deixou de ser.
Por volta das 15 horas uma
respiração cada vez mais pesada que exigia que, de tempos em tempos as
enfermeiras fossem chamadas a que fizessem seu serviço, até que, por volta das
16h30 uma crise que – ainda não se sabia – seria a última que lhe viria.
Lembro-me de minha vó aflita
assistindo um instante em que era clara a luta de alguém pela própria vida e
minha mãe, como numa oração aos céus e numa súplica ao próprio pai, pedindo-lhe
que, enfim, permite-se se descansar.
(na noite anterior, mesmo tendo
tomado uma dose de remédio para dor que, segundo o médico, faria qualquer
pessoa forte dormir por uma semana, meu avô tinha acordado e, com o piscar de
olhos e apertar de mãos, comunicou-se com os 04 filhos, pediu que fizessem uma
oração, lhe lessem a Bíblica e lhe cantassem alguns hinos da harpa. O médico,
descrente, ainda dissera a minha mãe e seus irmãos: “- não acredito nesse Deus
de vocês, mas alguma coisa de diferente há na situação de seu pai. Ele não
poderia estar acordado.” O médico precisou ver com os próprios olhos).
As enfermeiras nos pediram que
saíssemos do quarto. A angústia era um sentimento que não se permitia apenas
sentir, mas mostrava-se nos olhos e nos rostos de nós três que estávamos ali.
Minha vó esquecera sua bolsa no
quarto. Coube-me a mim busca-la. Ali entrei e, até hoje, trago a certeza de ter
visto os últimos segundos do que seria a vida que mais me faria falta na minha
vida.
Do tempo em que saí do quarto,
por volta das 17h05 daquela tarde cinzenta de quinta-feira, passaram-se 10
minutos, até que a enfermeira viesse com a inevitável, porém triste notícia.
Naquela tarde de quinta-feira
encerrava-se uma vida que pode se dizer vitoriosa. Uma vida que iniciara-se num
dia 1º de novembro de 1939 (registrado no dia 04 de novembro). Ali acabava a
vida terrena de um vencedor: bom marido, de gênio forte, mas amoroso; pai de 04
filhos; pastor de milhares de almas, de grandes igrejas, seguramente um dos
maiores pastores das Assembleias de Deus no Brasil; então avô de dois netos;
sogro de 01 genro e 03 noras. Ajudador dos que recorriam a si.
Até que ele fosse não conhecia
quem me fosse próximo que tivesse ido e depois que ele partiu, foi-me boa a
vida no sentido de permitir que ninguém mais partisse. Mas até hoje dói.
Meu avô, Perácio Grilli, nome que
ganhou em homenagem a um jogador da Seleção Brasileira que disputou as copas de
1934 e 1938, morreu de câncer. Uma morte anunciada em dois momentos diferentes:
o grupo de jovens da Assembleia de Deus de Osasco foi visitar a igreja do Jd.
Vila Formosa. Não era hábito dele acompanhar essas saídas, mas como era uma
igreja de uma região em que ele morou e vizinha de uma outra de que foi pastor,
resolveu que iria. Era junho ou julho de 1998. Até então, meu avô vendia saúde.
Homem grande que raramente se gripava. Ao final do culto, enquanto
cumprimentava e era cumprimentado, uma senhora se aproxima de minha vó. Minha vó
não a conhecia e ela não conhecia minha vó. Essa senhora a toca no ombro, chama
sua atenção, aponta na direção de meu avô e lhe diz: “Deus manda avisar que meu
servo já está preparado!”
Como se aproximou, essa senhora
se foi. O choque de minha vó foi tal que ela não comentou com ninguém.
Certamente quis desprezar aquela palavra no seu coração. Calou.
Setembro de 1.998: a igreja de
Osasco comemorava seu Jubileu de Ouro. Após uma grande e difícil reforma, uma
semana de programações para comemorar os seus 50 anos. Num dos cultos, o
preletor da noite, Pr. Samuel Bezerra, parou a palavra
e disse mais ou menos assim: “Deus está me incomodando para que eu diga
algo. Não ia dizer. Estou calando, mas Ele me manda dizer: Ele tirará uma rosa
muito valiosa desse seu jardim e muitos não entenderão, mas não é para se
questionar. Ela já está pronta!”.
À noite, quando chegamos na casa
de meu avós, à mesa de jantar meu avô, taciturno como era raro, confidenciou:
senti que aquela palavra foi para mim.
Outubro de 1.998: uma forte dor
no peito e desconfia-se de um infarto. Levado às pressas ao hospital, fica de
observação e a equipe médica solicita uma biópsia do pulmão. Não era um
problema cardíaco e o diagnóstico não podia ser pior: câncer. O pior e mais
astuto dos cânceres.
Não sei precisar o dia, mas tenho
por certo que foi uma quarta-feira a tarde quando, tendo meu avô descansando no
quarto que era de minha irmã, minha mãe talvez sem saber como dar a notícia, me
vê deitado sobre sua cama e me diz: “não faça muito barulho. Seu avô está com
câncer”. Ele ainda não sabia.
Aquela notícia me caiu como uma
bomba. Na insignificância dos meus 13 anos, o que me veio a mente foi um sonho
sonhado semanas antes em que eu via, num cenário muito escuro e enevoado, um
caixão no centro da igreja de que meu avô era pastor e duas pessoas conversavam
quando uma perguntava para a outra: “do que ele morreu?” e a outra dizia: “câncer”.
No sonho eu não via quem estava
no caixão, mas não era preciso ver.
O abatimento tomou conta de
todos. Havia, naquelas primeiras semanas o paradoxo de quem queria acreditar
que o Deus que se pregara e se ouvira naquela casa faria o milagre e mostraria
a grandiosidade de Seu poder, contra o medo do inevitável pior.
Todas as noites, em minha casa, a
família se reunia e fazíamos um período de cânticos e outro período de oração.
Dia sim, dia também, todos prostravam-se e pediam pelo que julgavam que viria.
Na igreja, até então, havia
rumores, mas nenhuma confirmação. Por alguma razão que não me recordo, esse
problema particular não foi transmitido de imediato. Notava-se a estranheza na
ausência de um pastor sempre presente.
Antes que se desse a notícia para
a igreja, a visita de uma senhora bastante respeitada com um recado. Ela disse
que, enquanto lavava louças, uma voz lhe ordenara que fosse até meus avós e
lhes dissesse que Deus já havia preparado aqueles que “poriam às mãos no meu
avô”. E não poderiam ter sido mãos melhores. A médica oncologista que lhe
tratou tinha acabado de perder um pai com o mesmo câncer e tratou do meu avô
como quem trata do próprio pai; o enfermeiro contratado, quando soube que meu
avô era pastor, revelou-se evangélico e, por vezes, considerou sequer cobrar
pelos seus serviços. A fisioterapeuta era de um cuidado que ia além do
profissionalismo.
Mas a roda da vida continuava a
rodar e a doença, cruel como só ela, estava ali.
Culto de Natal de 1998: é chegada
a hora de comunicar à igreja. Àquela altura as sessões de quimioterapia já
debilitavam um corpo atacado por um câncer poderosíssimo. A família apresentou
dois louvores naquela noite: “Eu não me esqueci de ti” e “Quisera sempre orar”.
Encerrado o louvor foi dada a palavra a meu avô que noticiou para a igreja o
deserto que atravessava. Como homem de Deus que se soube, disse ter fé de que o
tratamento que fazia seria como as águas do rio Jordão foram para Amã; que os
remédios que tomava seriam como o lodo que Jesus passou nos olhos do cego e que
em breve veria o relógio de Acaz andar para trás e receberia a resposta de
Deus.
A igreja em prantos, pedia a Deus
por Sua misericórdia.
Àquela altura, o médico já tinha
lhe dado não mais que 06 meses de vida. Pediram ao médico que não lhe dissesse
que esse era o prognóstico porque seria uma notícia assaz devastadora, no que o
médico deu de ombros e disse que se passasse por meu avô lhe diria. O médico
não disse, e os meses que não seriam mais do que 06 se meu avô fosse muito
forte, foram quase 08.
Meu avô foi velado como se fosse
um Chefe de Estado. Centenas de pastores de toda a região Sudeste, Goiás e
Brasília compareceram à cerimônia e ali contaram histórias acerca daquele homem
que, soube eu ali, despertava toda sorte de admiração em homens que também
despertavam admiração.
Mais de 2 mil pessoas passaram
por aquela igreja.
Lembro-me que quando o Quarteto
Alfa cantou pela manhã “Mais perto quero estar”, foi quando a ficha caiu. Meu
avô estava perto de Deus e, para sempre, longe de mim.
A marginal do rio Tietê parou
para que os batedores da polícia guiassem o cortejo fúnebre até o Cemitério da
Vila Alpina, numa fila de carros que, certamente, poucas vezes se viu naquela
cidade de São Paulo.
Confesso que tenho vários momentos
em que acho mais fácil descrer em Deus do que crer. Muitas vezes, para parafrasear
Vinícius, “quero crer, mas não consigo. É tudo uma total insensatez”, mas é a
lembrança do meu avô, seu exemplo e tudo que permeou sua passagem dessa vida,
que me mantém um mínimo de sanidade espiritual.
Note-se que, as dores de câncer
aumentavam quando lhe davam morfina, mas sumiam quando tomava um simples
relaxante muscular.
Hoje ficam a lembrança e a
saudade. Não houve um dia nesses 4749 dias em que eu não desejei pelo menos
mais um dia com meu vô.
Foram várias as noites em que
acordei de um sonho em que ele parecia muito vivo e tudo que eu queria era
poder ter a chance de sentar no chão e ouvi-lo falar. É poder beijar-lhe a
face, dizer que amo e que ele não se atrevesse a morrer outra vez, porque a
falta que ele faz é brutal.
Milhares conheceram o pastor; 04
conheceram o pai; outros 04 o sogro. 01 conheceu o esposo, mas o avô amoroso,
docemente severo quando precisava ser, desses que ficava bravo se eu falasse de
horóscopo ou cantasse em falsete querendo imitar algum cantor de rock, esse avô
que fazia de tudo para ver um sorriso dos netos e que ficava bravo se lhe
mexiam o jornal, esses só conhecemos Lilian, minha irmã, e eu. E como ele faz
falta.
As vezes me pego olhando para o
céu desejando que fosse verdade que algumas daquelas estrelas fosse ele olhando
por mim. Mas ele não me haverá. Olho meus dias e vejo que me aproximo do tempo
em que a maior parte da minha vida será uma vida sem a presença dele e me pego
temendo esquecer o tom de sua voz, as formas do seu rosto, guardando apenas
algumas lembranças pontuais suas. Mas o tempo, mesmo cruel, não é tão poderoso
assim.
Hoje faz 13 anos. Daqui alguns
anos serão 30 e, se eu tiver sorte e saúde, passarão mais de 50 anos, e não
haverá ano, não haverá mês ou dia em que eu não lembrarei de meu vô como
exemplo, com carinho e sempre com o mesmo ou ainda maior amor.
Dessa linhagem do tronco que vem de
seu pai, os Grillis continuarão, porque, se ele era Grilli, Grilli também eu
sou.
Onde quer que ele esteja, que ele
sempre receba o beijo meu.