sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Tempo de fazer feliz

Uma das minhas preocupações de ano novo (e vejam a que ponto cheguei: se outrora fazia resoluções de ano novo, pego-me, agora, em meio a preocupações de ano novo) é com o excesso de mau humor e de rancor que parecem estar tomando conta de grande parte das pessoas. Se é que posso tomar as redes sociais como termômetro para uma amostra “meio generalizada” da sociedade, apontaria indivíduos cada vez mais armados uns contra os outros, prontos para dispararem suas raivas, seus ódios, descarregarem toda a sua frustração contra quem quer que seja. E não consigo acreditar que façam isso por prazer. Enxergo mais uma necessidade, uma compulsão, do que uma liberalidade de quem pensa “hoje é dia de fazer mal”. Imersos na frustração que muitas vezes nem sabem que têm, detratam e distratam o outro porque só na tentativa de diminuir um é que conseguem a fantasia de se sentirem relevantes uma vez que aumentados na condição de nada do nada que são.
Agora, se por um lado quero viver essa fé de que esse mal (da detração e do distrato) é um impulso motivado por uma frustração recalcada e, portanto, a maioria faz sem que tenham, de fato, escolhido fazer, eu acredito que fazer o bem pode, sim, ser questão de escolha. E não vejo razão para não sê-lo e para que não seja. E daí que o que começa como uma preocupação pode, muito bem, fazer-se fonte de inspiração: e se o tempo do ano novo se fizesse tempo de um novo jeito de ser? E se ao invés de sermos duros e ressentidos, houvéssemos uns aos outros com mais carinho e gratidão? Se ao invés de mágoa e rancor, compreensão e amor? Não descuido, mas o cuidado de quem presta atenção no que há e em quem vem.
É tudo uma questão de sermos mais atentos com a vida que nos é dada a viver. E com aqueles que vivem conosco – e a gente com eles – na vida que nos é dada a viver.
Ora, certamente nos há aqueles que gostamos e que nos gostam e se há os que gostamos, são esses que queremos felizes. Pois façamo-los felizes. É tempo de construirmos dias felizes, lutarmos bravamente contra a tristeza uns dos outros, nos ocuparmos de quem parece abatido e, tantas vezes só precisa de um sorriso que lhe diga “conta comigo; estou aqui”. Isso é construir felicidade em períodos de tristeza. E temos esse poder, essa... possiblidade.
Por exemplo: que tal fazer alguém feliz no meio de uma tarde em que não espera aquela ligação? Sim, porque mensagens em aplicativos qualquer um manda, mas um “só queria ouvir tua voz pra saber se estava tudo bem e te fazer saber que eu te quero bem”, não é qualquer um que tem. É uma questão de mostrar que o mundo até pode ser grande, mas o teu se basta na presença feliz de quem você quer bem e não esconder e nem ter medo do que vem disso.
Que tal um convite para um programa, sentarem num bar, restaurante, conversarem, verem um filme, ouvirem música? De repente saem os dois pra caminhar e, então, enquanto conversam, percebem a lua, param para olhar a lua, um do lado do outro, sorriem um para o outro, calam-se, dão-se as mãos, sentem-se, voltam a andar, olham-se, um dos dois olha tímido para o chão e daí se deixarem levar pelo momento que por ser bonito lhes faz... felizes?
Gente feliz não tem tempo de se incomodar se alguém escreve o que não gosta ou se alguém gosta do que detesta. Gente feliz que vive no mundo de carne e osso não se incomoda com o que o outro faz no mundo virtual (e nem no real). Gente feliz que vive, vive pra valer. E sente e goza e gosta e ri! Não vegeta em cima de uma cama, trancado num quarto, esperando que percebam que está vivo quando falta bem pouco pra terminar de morrer.
Mas gente feliz não vive sozinho. Não porque não dê, mas porque ser feliz também é questão de fazer.
Vamos sair, procurar quem e vamos... vamos viver!



Feliz 2017!!!

Um comentário:

Anônimo disse...

As pessoas não precisam de pena, precisam de honestidade. A realidade sombria e ocasional deve ser mesmo a melhor escolha.


NEIDE

O céu está limpo, não há nenhuma nuvem acima de nós. O avião, entretanto, começa a dar saltos, e temos de pôr os cintos para evitar uma cabeçada na poltrona da frente. Olho pela janela: é que estamos sobrevoando de perto um grande tumulto de montanhas. As montanhas são belas, cobertas de florestas; no verde escuro há manchas de ferrugem de palmeiras, algum ouro de ipê, alguma prata de embaúba, e de súbito uma cidade linda e um rio estreito. Dizem-me que é Petrópolis.

É fácil explicar que o vento nas montanhas faz corrente para baixo e para cima, como também o ar é mais frio debaixo da leve nuvem. A um passageiro assustado o comissário diz que "isso é natural". Mas o avião, com o tranqüilo conforto imóvel com que nos faz vencer milhas em segundos, havia nos tirado o sentimento do natural. Somos hóspedes da máquina. Os motores foram revistos, estão perfeitos, funcionam bem, e temos nossas passagens no bolso; tudo está em ordem. Os solavancos nos lembram de que a natureza insiste em existir, e ainda nos precipita além dela, para os reinos azuis da Metafísica. Pode o avião vencer a montanha e desprezar as passagens antigas que a humanidade sempre trilhou. Mas sua vitória não pode ser saboreada de perto: mesmo debaixo, a montanha ainda fez sentir que existe e à menor imprudência da máquina o gigante vencido a sorverá de um hausto, e a destruirá. Assim a humilde lagoa, assim a pequena nuvem: a tudo isso somos sensíveis dentro de nosso monstro de metal.

A menina disse que era mentira, que não se via anjo nenhum nas nuvens. O homem, porém, explicou que sim, e pediu que eu confirmasse. Eu disse:

— Tem anjo sim. Mas tem muito pouco. Até agora desde que saímos eu só vi um, e assim mesmo de longe. Hoje em dia há muito poucos anjos no céu. Parece que eles se assustam com os aviões. Nessas nuvens maiores nunca se encontra nenhum. Você deve procurar nas nuvenzinhas pequenas, que ficam separadas umas das outras; é nelas que os anjos gostam de brincar. Eles voam de uma para outra.

A menina queria saber de que cor eram as asas dos anjos e de que tamanho eles eram. O homem explicou que os anjos tinham as asas da mesma cor daquele vestidinho da menina; e eram de seu tamanho. Ela começou a duvidar novamente, mas chamamos o comissário de bordo. Ele confirmou a existência dos anjos com a autoridade de seu ofício; era impossível duvidar da palavra do comissário de bordo, que usa uniforme e voa todo dia para um lado e outro, e além disso ele tinha um argumento impressionante: "Então você não sabia que tem anjos no céu?" E perguntou se ela tinha vontade de ser anjo.

— Não.
— Que é que você quer ser?

— Aeromoça!

E começou a nos servir biscoitos; dois passageiros que estavam cochilando acordaram assustados porque ela apertou o botão que faz descer as costas das poltronas; mas depois riram e aceitaram os biscoitos.

— A Baía de Guanabara!

Começamos a descer. E quando o avião tocava o solo, naquele instante de leve tensão nervosa, ela se libertou do cinto e gritou alegremente:

— Agora tudo vai explodir.

E disse que queria sair primeiro porque estava com muita pressa, para ver as horas na torre do edifício ali perto: pois já sabia ver as horas.

Não deviam ter lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As horas se juntam, fazem os dias, fazem os anos, e tudo vai passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu, nem na terra.

(RUBEM BRAGA)