sábado, 30 de agosto de 2014

Dormir ou viver? Ficar ou fugir? Correr ou deitar? Viver sem sentir, nem amar até despertar. E aí? É por aí?

Era daqueles dias em que se acorda sem precisar fazer nada. A ideia de passar as próximas 72 horas na cama lhe era das mais sedutoras. Não tinha planos, não tinha família, não tinha vontade, não tinha nada. Mas de repente tudo isso parecia estranho demais.
Não que fosse dos mais festeiros, dos mais presentes ou dos mais afetivos. Sempre mais ocupado consigo, pouco lhe importavam as convenções e as expectativas. Bebia quando queria beber, dormia quando queria dormir, satisfazia-se quando queria se satisfazer e, pra tudo isso, nunca achou qualquer dificuldade que lhe fosse maior do que a que ele mesmo se representava.
Era daquelas pessoas altivas, indiferentes, mas que prestam atenção. No seu íntimo se ria de todos, pareciam banais. Ao mesmo tempo, não lhes negava qualquer apoio, uma palavra ou um aperto de mão. Acostumado a ser dos que são procurados, desaprendeu a procurar. Suas chegadas sempre só menos caladas do que suas saídas. Não se sabia perceber, nem ser percebido, tampouco sabia se era alguém cuja presença alegrasse ou a ausência se fizesse sentir. Mas se era solução de tantos, por que não seria, ele mesmo, a solução de si?
Lia tudo. Lia livros, lia olhos, lia almas, lia corpos, lia mãos. Assustava. Parecia sempre saber mais do que revelava, mas para si e consigo, sempre pensava saber menos do que precisava. Curioso de todas as vidas, buscava em quem via o que não era mostrado, o que era calado e qual era a razão do constrangimento de se permitirem ver... qual o medo que as pessoas têm de que saibam quem elas realmente são? Ele sempre sabia. Presunçoso, mas com suas razões...
Mas estava naqueles dias em que se acorda sem precisar fazer nada e ele não precisava fazer nada. No entanto, de repente ele precisava fazer algo, e fazer algo era fazer tudo, era viver tudo, experimentar tudo, não deixar nada de fora desse tudo que nascia de dentro de alguém que até então não precisava fazer nada.
Pela primeira vez a cama foi ambiente inóspito. Logo ali em que viveu seus melhores momentos seja dormindo parado ou acordado em intenso movimento, agora lhe parecia como a cama do faquir que ele não era. Levantou-se.
Depois de muito tempo, deu-se com o Sol. Já nem lembrava que Sol havia, não que não enxergasse a luz do dia, só não parecia mais forte do que o conjunto de trevas que o ocupavam desde si.
Só que agora havia cores, via cores. E eram cores naturais. Diferente do que ele era. A natureza que se lhe apresentava – ele bem sabia – existia desde antes dele e ali continuaria quando ele não fosse mais, mas era diferente. Ele via mais do que enxergava no todo do tudo que reparou. Teve sede e viu-se quando à margem da água cristalina que precisou - e se deixou - beber. E não é que até o reflexo turvo da água que se movia lhe mostrava outro alguém que ele já não sabia que era?
Depois de muitos anos, quis correr. Depois de muitas noites, quis amar. Depois de muito tempo, quis ser tudo de novo aquilo tudo que não poderia ter deixado de ser.
Se antes tudo parecia tarde, agora tudo parece estar no momento, esse parece ser o momento. É urgente, sim, mas é o momento. O momento do novo, do ousado, do abusado, do excedido e do fim do soberbo que, ao menos em arrogância, pouco fez questão de ser comedido.
Ouvia as outras vozes que antes pareciam tolas. Agora só parecem o que, realmente, são: vivas.
Assistia outras pessoas que antes pareciam “apenas” vivas e via, agora, o que elas, realmente, são: gente.
Assistiu aquela gente e descobriu-se quem realmente é: mais um.
Mas não se sentiu mal por ser mais um. O mais um lhe fazia parte de um grupo que pensava que não tinha e lhe unia a uma história que apenas sabia que existia. Agora era mais um que queria sentir o que já há muito tinha calado, enterrado e que pensava ter até matado, mas que tão-somente dormia.
Quis ligar para os números que já não tinha; quis ouvir as vozes que há tempos não ouvia e mesmo sem qualquer sentido, quis até montar ao cavalo que nunca teve e escalar o monte que nunca viu. De repente era mais um dentre tantos que, mesmo se sabendo um, não se queriam ser apenas esse um. Lembrou-se de quem era, antes de ser quem se fez. Lembrou que amou, lembrou que gostou, que quis, foi querido, gostado, amado... e odiado também, mas agora sentia e já fazia muito que não lhe era normal sentir.
(E de repente se pergunta: Será culpa desse sol que sempre houve, mas que parece pra ele só ter nascido agora? De onde vem a luz que lhe sangra a escuridão e lhe permite que renasça vida? Vem do infinito e desde ele entra ou já estava guardada no peito de quem por medo de amar, ao autoexílio condena? Foi a noite que perdeu a graça ou ela nunca passou de jazigo que guardava um corpo que vivia sem vida?)
O tempo passou, mas não acabou e, então, se há tempo e se há vida, faça-se da vida a vida que tem que ser. Dança, corre, salta, beija, ama, deflora, namora, permite, se deixa (até boceja), mas logo deseja e busca e acha e toma e se embevece seja de amor ou de cachaça.
Até a ressaca que há muito esquecida, agora surge como uma parte da vida que não pode passar. Tudo urge, mas urge com calma...
Calma... os dias não lhe roubaram experiência, só fizeram-lhe cético. Já não sucumbe aos primeiros impulsos. Ainda não levantou. Não ligou para todos os números, nem ouviu todas as vozes. Não subiu nenhum monte a cavalo. Mas agora sentia... até ausências e quereres que não mais tinha, agora ele tinha.
Levanta-se da cama, espreguiça-se, deixa a cama agora já é passado (ou começo de futuro), por ora, só deixou de ser cenário. São 72 horas para fazer tudo, inclusive nada. Mas quem disse que fazer nada não pode ser tudo o que se tem para fazer?
Talvez mais tolerante, talvez menos ranzinza, talvez mais permissivo e menos possessivo, apenas sabe que algo mudará, mas não tem pressa. O tempo que tem é o tempo que lhe basta acabe ele daqui a muitos anos, acabe ele na semana que vem. Quanto à espera? A espera até agora lhe fez consciente de que viver é bom quando se tem consciência da importância que tem a vida da gente, mas que no fundo, a vida da gente – de toda a gente – é bem pouco importante pra vida dos outros que têm a sua própria vida assim como a vida da gente.

Mas é por aí?

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