Lembro como se ontem
que ela “voltou”. Sim, voltou. Houvera um tempo em que tivesse sido talvez a
pessoa mais presente daqueles meus dias. Eu era solteiro há pouco, ela jamais
sozinha, em alguma medida éramos o que a distância pareceria companhia que convinha,
mas que aos poucos foi se fazendo companhia que bastava porque companhia que se
queria. Mas apenas companhia.
Acontece que a vida vive e nem só
de companhia vive o homem (e a mulher). A certa altura a única certeza era que chegaríamos
juntos e que no outro dia nos perguntaríamos se voltáramos bem. Era a vida
vivendo, os encontros se acumulando, o cuidado existindo, mas ninguém se empatando.
Ate que a frugalidade passou a ser um com o outro. Havia os que passaram a ser
companhia constante e quem sempre se tinha, pouco a pouco, sem que notasse, se
perdia.
Ela se casou primeiro. Grande festa,
muita alegria. Aplausos e desejos de felicidade. Mas há meses que não a via,
era pouco o que nos falávamos. E mesmo à falta de pretexto, não fui. Tinha o
convite, tinha o terno e tinha o dia. Mas não tinha a vontade de aplaudir o
que, por alguma razão, me ofendia.
O curioso é que também havia meu
próprio casamento que nem eu sabia que logo chegaria. Dia após dia, o que era
costume se fez compromisso e mesmo sem festa, banda e damas de companhia, de
repente era eu que descobria minha casa abrigando minha nova companhia.
E a vida foi vivendo, acontecendo
e separações e divórcios ocorrendo.
Devo ter sido o primeiro a me dar
conta que o que era certo se fez erro. Pus muita fé na minha capacidade de me
manter inteiro onde faltava parte de mim. Por alguma razão, naquele início de
vida adulta acreditei que gostar era questão de escolha e que me bastaria
querer que meu afeto fosse dela e logo tudo faria sentido porque tudo seria
bom. Eu faria questão de fazer bem.
Ah, a empolgação da vontade de
quem se pensa prenhe da melhor paixão. Voluntarismo, erotismo... tudo parecia
que contribuiria para as núpcias perfeitas. Não seria preciso cartório, papel,
padre e qualquer juramento de uma fidelidade eterna. Não foi o que a vida
mostrou.
Com menos de 25 anos e eu já me
sabia recém-saído de um casamento sucumbido a uma gravidez naturalmente
interrompida, restava me reerguer. Restava me recuperar da falta dos beijos da partida,
da chegada e do durante da melhor convivência, me acostumar a falta do abraço,
do afeto, do boa noite ou do bom dia que me fazia sorrir ou da ligação no meio
dia só para lembrar que a noite logo viria e na sua esteira todo o desejo que não
era só eu quem nutria. Não havia mais o abraço que embalava, a imagem que
inspirava, a voz que acalmava, o olhar que acendia e a certeza do amor que me
habitava.
Quanto a ela, viu que quem se
mostrava muito, no final não era nada. Não tinha casado para esperar marido que
não sabia quando voltava ou para conviver com o álcool que se não fazia
agressivo, acabava tornando bufão, enerve, fraco. Mesmo os bons modos dos
tempos de namoro soçobraram a medida em que a convivência mostrava que se
casara com um homem, no mínimo, vil de modos, jeitos e trejeitos. Mas pior: vil
de moral.
Agora éramos os dois sozinhos,
machucados, desgastados... envergonhados. Envergonhados um do outro porque
sumidos das vidas que naufragavam em seus propósitos e que não se viam no
direito de voltar ao pertencimento mútuo de quem sempre se quis bem. Não que já
não houvesse redes sociais ou amigos em comuns de onde se sabia o que acontecia.
Era mais uma questão de não se ter certeza de qual o tratamento que a gente
realmente merecia.
Se eu quis procurar e dizer da
falta que sentia e de como lhe queria perto? Todo dia. Mas também queria que
ela me ligasse, que ela me dissesse que sabia do desejo que calei desde antes e
que se arrependia de quando não me viu ou por saber de mim temeu se permitiu ser
de quem não era eu enquanto eu me perdia na busca dela em quem não tinha nada
dela. Devaneei a busca do regresso dela, mas não arrependida, apenas desejosa
de descobrir se era verdade aquilo que, de mim, ela sentia.
De repente, num dia de voo atrasado,
aeroporto lotado e barulho irritante, duas mãos me envolveram os olhos. Não disse
“advinha quem é?”, mas também não precisava. O perfume a denunciara e eu soube
na hora que era ela (muito embora, até hoje ela jure que nunca teve aquele perfume
enquanto me tinha grato cativo dela). Sem qualquer susto lembro de subir minhas
mãos às suas mãos e, corridos meus dedos até seus punhos, puxando-a desde trás
de mim até diante dos seus olhos. Como ela ficava linda de azul. Seus cabelos negros
e mais crescidos, seu sorriso envolto de lábios tão bem feitos em harmonia com
o olhar travesso... e que abraço cheio de sentido o que se seguiu.
Ela partira do destino para onde
eu ia, mas seu voo também atrasara e sentada ao meu lado me contava o que nem sempre
eu ouvia no tanto em que eu me encantava. Ela estava ali e falava e falava ora
rápido outra hora acelerava e eu só conseguia sorrir e pensar no vazio que a falta
dela me causava.
- Eu falo muito. Me fala de você.
- Eu sinto sua falta e am...
Chamaram meu nome, o tempo
passara e só faltava o meu embarque. Os olhos dela brilharam à declaração
interrompida e de repente me pensei fraco por me por a falar o que, àquela
altura, eu não tinha motivo algum para acreditar que lhe interessaria saber. “Eu
amanhã te ligo assim que chegar” foi o máximo que consegui dizer. E liguei. Ela
me contou o que viveu, me disse dos seus planos, me contou dos seus medos, de
como não queria saber de ninguém antes de terminar seus projetos... eu ouvi,
disse de mim, marcamos um almoço, quem sabe um jantar...
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